A Reforma e a missão
Após participar de um encontro de igrejas no nordeste da França tive a oportunidade de dar uma palavra também aos adolescentes de uma escola cristã. Na entrada da escola a réplica de um mapa de 1573 chamou a minha atenção. Era o mapa do império francês do fim do século 16 com centenas e centenas de marcas, em forma de uma cruz, espalhadas por toda a sua extensão. O diretor da escola se aproximou explicando que as marcas indicavam a localização de cada escola cristã na França da época, cerca de duas mil! Com voz melancólica completou que “hoje não passam de vinte”. A forte presença de escolas cristãs era um resultado direto da Reforma Protestante sob a influência de Lutero, Calvino, Zwínglio, Farel e Knox que defendiam a pregação da Palavra, uma escola cristã em cada igreja cristã e um culto centrado em Cristo e não na Igreja.
A Reforma Protestante – desencadeada com as 95 teses de Lutero divulgadas em 31 de outubro de 1517 – foi, sobretudo, eclesiástica em um momento que todos os olhares se voltavam para a reestruturação daquilo que a Igreja cria e vivia. Renasceram assim os dogmas evangélicos.
A Sola Scriptura defendia uma Igreja centrada nas Escrituras, Palavra de Deus; a Sola Gratia reconhecia a salvação e vida cristã fundamentadas na Graça do Senhor e não nas obras humanas; a Sola Fide evocava a fé e o compromisso de fidelidade com o Senhor Jesus; a Solus Christus anunciava que o próprio Cristo estava construindo Sua Igreja na terra sendo seu único Senhor e a Soli Deo Gloria enfatizava que a finalidade maior da Igreja era glorificar a Deus.
A missão da Igreja, sua Vox Clamantis, não fez parte dos temas defendidos e pregados na Reforma Protestante de forma direta. Isso por um motivo óbvio: os reformadores possuíam em suas mãos o grande desafio de reconduzir a Igreja à Palavra de Deus e, assim, todos os escritos e esforços foram revestidos por uma forte convicção eclesiológica e sem preocupação imediata com a missiologia. Isso não dilui, entretanto, a profunda ligação entre a reforma e a missão como veremos a seguir.
A Reforma e as Escrituras na língua do povo
A Reforma levou a Igreja a crer que o curso de sua vida e razão de existir deveriam ser conduzidos pela Palavra de Deus, submetendo o próprio sacerdócio a esse crivo bíblico. Foi justamente essa ênfase escriturística que despertou Lutero para a tradução da Palavra na língua do povo e inspirou posteriormente centenas de traduções populares em diversos idiomas, fomentando movimentos como a WycliffeBibleTranslators com a visão da tradução das Escrituras para todas as línguas entre todos os povos da terra.
Hoje contamos com a Palavra do Senhor traduzida para mais de duas mil línguas vivas. João Calvino enfatizava que “… onde quer que vejamos a Palavra de Deus pregada e ouvida em toda a sua pureza… não há dúvida de que existe uma igreja de Deus”. O grande esforço missionário para a tradução bíblica resulta diretamente deste conceito resgatado na Reforma Protestante.
A Reforma e o culto participativo
A Reforma reavivou o culto em que todos os salvos, e não apenas o sacerdote, podem louvar e buscar a Deus. E Lutero, como uma de suas primeiras atitudes, colocou em linguagem comum os hinos entoados nos cultos. Esta convicção de que é possível ao homem comum louvar a Deus incorporou na Igreja pós-reforma o pensamento multiétnico através do qual “o desejo de levar o culto a todos os homens”, como disse Zuínglio, não demorou a ressoar na Igreja, culminando com o envio de missionários para o Ceilão pela igreja Reformada holandesa no século 17. Isso, então, disparou um progressivo envio missionário e expansão da fé Cristã nos séculos que viriam.
Um culto vivo ao Deus vivo foi um dos pressupostos reformados que induziu a obra missionária a levar esse culto a todos os homens transpondo barreiras linguísticas, culturais e geográficas.
A Reforma e a expansão da fé cristã
A Reforma destacou a Glória de Deus como motivo de existência da Igreja e isso definiu o curso de todo o movimento missionário pós-reforma no qual o estandarte de Cristo, e não da Igreja, era levado com a Palavra proclamada entre outros povos. Os morávios já testificavam sobre isto, no século 18, quando o conde Zinzendorf, ao ser questionado sobre seu real motivo para tão expressivo e sacrificial movimento missionário, respondeu: “estamos indo buscar para o Cordeiro o galardão do Seu sacrifício”. John Knox, na segunda metade do século 16, escreveu que, como resultado da Reforma, o Evangelho era exposto em toda parte, perto e longe. O centro das atenções, portanto, era Cristo e nascia ali um modelo cristocêntrico de pregação do Evangelho que marcaria o curso da história missionária nos séculos posteriores.
A Reforma Protestante passou a Igreja pelo crivo da Palavra e isto revelou a nossa identidade bíblica segundo o coração de Deus. Seguindo o esboço da eclesiologia reformada, poderemos concluir que somos uma comunidade chamada e salva pelo Senhor e com uma finalidade na terra. Zwínglio, logo após manifestar sua intenção de passar a pregar apenas sermões expositivos, em janeiro de 1519 afirmou em sua primeira prédica que “a salvação põe sobre nós a responsabilidade de obediência”. Não era suficiente apenas ouvir e compreender. Era preciso obedecer e seguir.
A Reforma e a motivação para o serviço e a missão
A Reforma também destacou o assunto do nosso propósito de vida e elucidou que a finalidade maior da nossa existência não é servir à Igreja ou a nós mesmos. A exposição de Calvino da carta aos Romanos, com especial destaque no último capítulo, deixa bem clara a evidência bíblica e convicção reformada de que vivemos e trabalhamos para a glória de Deus. A obra missionária, assim, passou a ser realizada não para expandir uma instituição, uma ideia ou um clero, mas para glorificar ao Supremo Criador e esta foi uma das grandes contribuições da Reforma para a missiologia protestante e para as ações missionárias.
Em Romanos16, versos 25 a 27, lemos: “Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar segundo o meu Evangelho” (fala de Deus), “conforme a revelação do mistério” (o “mistério” é o Messias prometido a todos os povos), “e foi dado a conhecer por meio das Escrituras Proféticas” (aponta para o meio de revelação), “segundo o mandamento do Deus eterno” (aponta para o desejo fomentador da nossa salvação), “para a obediência por fé”(aponta para o meio de salvação), “entre todas as nações” (esta é a extensão do plano salvífico de Deus).
Que lindo texto! Nele, Paulo resume a teologia da missão e expõe o propósito de Deus em resgatar pessoas de perto e de longe, em Cristo Jesus.
Mas qual o motivo maior para esse plano divino que visa a redenção de todos os povos? Ele completa no verso 27: “Ao Deus único e sábio seja dada glória …”. É a glória de Deus! E esse é também o maior e mais importante motivo para nos envolvermos com o propósito de fazer Jesus conhecido até a última fronteira do país mais distante, ou da família na casa vizinha.
Martinho Lutero, em um sermão expositivo em 1513, baseado no Salmo 91, afirmou que “a glória de Deus precede a glória da igreja”. É momento de renovar nosso compromisso com as Escrituras, reconhecer que existimos como Igreja pela graça de Deus, orar ardentemente por fidelidade de vidas e entender que o próprio Jesus está construindo a Sua igreja na terra.
A Reforma e a busca por um coração pronto e sincero
O símbolo de Calvino passou a ser um coração seguro por uma mão e apresentado bem alto. Ao redor, escrito em latim, se lia Cor Meum Tibi Offero Domine Prompte et Sincere – “meu coração a ti ofereço Senhor, pronto e sincero”. Calvino, usado por Deus em sua geração e tantas outras entendia que, além de todo o conhecimento teológico e humano, havia a grave necessidade de um coração quebrantado e pronto.
John Knox, na busca por um coração aquecido e avivado no Senhor Jesus proclamava que a ponte entre o conhecimento e a transformação era o quebrantamento. Dizia em outras palavras que, sem um coração quebrantado, nenhum conhecimento teológico ou humano produziria uma vida transformada.
Concluo citando uma vez mais as palavras do reformador Lutero no livro GlorytoGlory em que ele nos ensina a dar passos e nos mostra que nossa vida em Cristo, como também a nossa missão na terra, são uma caminhada.
“Esta vida, portanto, não é justiça, mas crescimento em justiça. Não é saúde, mas cura. Não é ser, mas se tornar. Não é descansar, mas exercitar. Ainda não somos o que seremos, mas estamos crescendo nesta direção. O processo ainda não está terminado, mas vai prosseguindo. Não é o final, mas é a estrada. Todas as coisas ainda não brilham em glória, mas todas as coisas vão sendo purificadas”.
Que o Senhor nos quebrante, converta, abençoe e use para a Sua glória.
*Ronaldo Lidório é doutor em antropologia e missionário da Agência Presbiteriana de Missões Transculturais e da Missão AMEM.
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