Sônia Zaghetto
Sob o sol inclemente, milhares de pessoas enfrentam uma fila para entrar na área cercada diante do Planalto. Índios, funcionários públicos, velhos militantes de longos cabelos brancos e jornalistas se comprimem contra as grades. Muitos vestidos de vermelho, com camisas da CUT, bandeiras da UNE e uma espécie de avental do MST. Há gente fina, elegante e, creio, sincera, com óculos Ray-Ban e iPhone, mas a maioria traz na roupa e na expressão o selo da pobreza. Cheiro do suor e balões vermelhos, rosas meio murchas nas mãos das mulheres. Celulares registrando cada movimento, como convém a esses tempos.
Palavras de ordem de repente rebentam no meio da multidão. “Dilma, guerreira da pátria brasileira” e “Golpistas não passarão” soam mais modernos, mas “O povo não é bobo: abaixo a rede Globo” parece ressuscitar algum fantasma da década de 70 que deveria estar morto e enterrado, não fossem os interesses da hora. Entre os que estão fechados no espaço gradeado há reclamações sobre crianças e idosos sedentos. Seus pedidos por água são ouvidos com total impassibilidade pelos seguranças do Planalto.
Nem bem encosto na grade e ouço uma moça, com crachá de funcionária de um dos Ministérios, comentar com a amiga: “A luta continua. Eles vão ter que nos matar. Nós, servidores públicos, mulheres, negros e trabalhadores rurais enfrentaremos tempos muito difíceis. Mas nós resistiremos“. A frase me soa surreal. Eles. Quem seriam eles? Temer? As perversas elites? Não me contenho e indago. “Eles, os que sempre mandaram no Brasil e agora não admitem que os pobres estejam no comando. Esses coxinhas, claro!“, é a resposta.
Um silêncio se faz em mim. Coxinhas. Sob esse rótulo – mais um dos que nos separam – vi o rosto de cada um de meus muitos amigos que combatem, com todas as forças, o governo petista. São médicos, garçonetes, taxistas, engenheiros, porteiros e professores. Alguns têm filhos recém-nascidos, outros estão desempregados, há os que estão abatidos com o noticiário interminável sobre corrupção e os que apostaram tudo o que tinham em pequenos negócios. Todos temem a sombra da grande crise que nos engolfa. Além de posts no Facebook e participação em manifestações, são inofensivos como borboletas. E menciono borboletas propositalmente, pois tenho um ridículo medo delas. São incapazes de me fazer qualquer mal, mas, em algum momento de minha vida, aprendi a temê-las e até odiá-las, coitadas.
Exatamente nessa hora recebo uma mensagem da Paula, que me confidencia: “Por que estou constrangida em dar uma leve comemoradinha em público!? Será que é respeito pelos colegas de esquerda, queridos, ou porque não há o que comemorar de verdade? Depois de tanto tempo eu deveria estar mais eufórica, mas não estou”. Paula, coxinha e borboleta, cuja doce sensibilidade até em comemorar traduz bem o instante e o perigo de julgar desconhecidos. Paula e sua mensagem são uma demonstração de que nem todo “coxinha” toma champanhe em copinhos de plástico na Paulista.
“Olha essas flores, vem aqui que eu te dou. Essas duas cercas não podem nos separar!“, grita um rapaz com sotaque gaúcho para uma garota do outro lado da grade. Não ouço a resposta, mas registro no rosto dele, se não o amor, mas a pura atração em tempos de cólera. Ele insiste: “Vem pra cá com a sua câmera. Aqui não tem ladrão nem golpista“. Atrás de mim, uma voz responde: “Há golpistas aqui, também“.
O ruído aumenta, punhos erguidos, mãos fechadas. Os ânimos se acirram, a grade é derrubada, um grito alto se eleva e o povaréu invade a cena. A jornalista americana está visivelmente tensa, assim como o cinegrafista musculoso, de óculos de sol e coberto de suor. Juntam os equipamentos e correm. Apenas um susto. A segurança intervém e põe a grade de pé novamente.
Olho para o lado e vejo dois militantes de meia idade – Tomás e sua companheira – que carregam cartazes em russo e alemão falando sobre o suposto golpe. Vieram do Ceará e querem alertar o mundo sobre o que acreditam ser um atentado à democracia. Atrás deles, um homem idoso, de longos cabelos totalmente brancos, compra um pacote de amendoim na barraca do ambulante (sempre os há). Veste uma regata branca. Os cabelos empapados de suor grudam na pele clara e no rosto vermelho.
De repente, um burburinho: o ex-presidente Lula chega. Começam a cantar um olê-olê-olê-olá-Lulá-Lulá. Apesar da saudação, Lula mal olha para os apoiadores. Passa direto, sem disfarçar o abatimento.
Pouco depois, Dilma começa a falar. Cada frase transmitida pelo sistema de som desperta reações na plateia. Chama o processo de impeachment de golpe e repete que não cometeu crime de responsabilidade. Quando se diz “vítima de uma grande injustiça” vários manifestantes começam a chorar, principalmente as mulheres. A presidente afastada pede várias vezes para que os seguranças mudem de lugar para que ela enxergue as pessoas do outro lado da grade. “Quero ver o pessoal!”, repete.
Atrás dela, Lula se mantém alheio, acariciando o bigode com um gesto mecânico e aquela expressão de descrença que todos temos nos velórios dos amados. Lula assiste ao enterro de seu projeto. Pergunto a mim mesma no que estará pensando. Lembro do líder carismático, domador de multidões de outrora, e tenho certeza que, naquele instante, ele está enfrentando a si mesmo: as escolhas equivocadas, a voracidade de seu grupo que lhe corroeu a popularidade, os planos de poder destruídos. Parece muito, muito velho. E cansado.
Volto novamente minha atenção para Dilma, que responsabiliza por sua queda não os erros que cometeu, mas os adversários, “os que não conseguiram chegar ao governo pelo voto direto do povo”, os que perderam as eleições e “tentam agora pela força chegar ao poder”. É aplaudida em delírio.
Em meio ao discurso de Dilma, disperso-me de novo. Noto um rapaz. Muito jovem, negro, vestido com simplicidade. Soluçava abraçado à mãe, que o consola. Eu e outra jornalista os fotografamos (a imagem era irresistível). A mãe nota as câmeras e quase sorri, abraça-o mais, conferindo pelo canto dos olhos se os celulares registram a cena. O rapaz afunda a cabeça no pescoço dela, as lágrimas encharcando a camisa. Balbucia frases sobre futuro incerto, desesperança, portas fechadas e perdas. Sinto uma brutal vontade de chorar. Uma compaixão imensa por aquele rapaz, tão jovem, acreditar que apenas um governo é capaz de erguê-lo.
Penso imediatamente em meu tio-avô, Deoclécio, negro, com seu impecável uniforme branco da Marinha Mercante, muito engomado, desfilando perante a vizinhança, orgulhoso de só dever sua carreira a si mesmo. E sofro, muda, por aquele rapaz estar tão vitimizado e dependente. Minha dor imensa é por terem roubado dele o que temos de mais esplêndido: o espírito independente, altivo. Abatido, ele agora acredita que não é nada. Sem a mão do governo, que seria dele? E isso, penso, é uma coisa inominável.
Isso, sim, é a restauração da escravidão. Uma escravidão que não atinge apenas a uma raça, que não vitima uma epiderme: a escravidão da alma, que é subjugada até não mais acreditar em si mesma, em seu esforço e capacidade. Alguém disse àquele rapaz – quase menino – que só sob a tutela do grande pai governamental ele seria algo na vida. E ele acreditou. Ao microfone, Dilma repete que é um dia muito triste.
Uma espiada em torno e vejo novamente os tipos clássicos que deveriam estar ali, obrigatoriamente. Alguns com jeito de classe média alta, mas que carregam uma culpa ancestral pela desigualdade social que testemunham. São sonhadores como Lennon e querem mudar o mundo como Cazuza. Dividem o planeta entre capitalistas feios e socialistas bondosos; acreditam que ser de esquerda é um certificado de “ser do bem”. Demoro algum tempo observando a moça que tudo fotografa com um iPhone: corte de cabelo moderno, óculos de sol e um colar de miçangas alaranjadas enrolado no braço direito.
Volto a atenção para Dilma pela terceira vez. Ela está dizendo que sofreu a dor da tortura, da doença e, agora, a da injustiça e da traição. Um coro se eleva: “Fora Temer!”. Ouço o discurso pensando que ela também foi vítima da própria arrogância. A primeira mulher a presidir o Brasil pecou por falta de humildade, por inabilidade, por não saber ouvir.
A presidente se aproxima de onde estou. Abraça e beija as mulheres que estão ao meu lado. Sorri muito. Noto seus cabelos escovados, a face coberta de pesada maquiagem. Terá dormido? Estará medicada para enfrentar a dureza da hora? Começo a sentir piedade, mas lembro que, poucos minutos antes, ela havia, ainda uma vez, insinuado a toda aquela gente desesperançada que eles perderiam tudo o que tinham conquistado: Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Fies, Prouni, cotas raciais e sociais. E a imagem do rapaz que chorava absorve toda a minha capacidade de sentir compaixão.
A presidente se afasta e começo a retornar. O caminho está impedido por muitos índios que cantam, dançam e gritam pela demarcação das terras indígenas. Penso nos treze anos em que o autointitulado governo das minorias e dos desamparados não resolveu a questão indígena, a mortandade dos Guarani-Kaiowá e a reforma agrária.
Abro caminho entre os índios, os jornalistas que correm e uma parte do povo que se dispersa. De repente eu me apanho rindo e tentando decifrar uma imagem: caminha à minha frente um objeto de chita onde está escrito “Dilma”. Penso comigo: parece algo que faria parte de uma encenação de bumba-meu-boi, mas era apenas um guarda-chuva que tinha uma espécie de sainha costurada nele. A pessoa andava e a sainha ia sacolejando pela Praça dos Três Poderes, com suas letras de tecido colorido costuradas. Tão pueril, tão brasileiro.
E pensei, como Vinicius, poeta e brasileiro como eu:
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!