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O mundo, a carne e o Diabo

Igrejas sob ataque

A Igreja se confronta com um desafio de proporções gigantescas. Se os grandes inimigos do cristão são desconhecidos ou passam despercebidos, resta-nos esperar as consequências. O mundo se infiltra na Igreja, tornando-a indistinguível da cultura e dos valores ao redor. O que sobrevive é a cristandade com vestígios dos tempos passados. Os templos servem de museus e pontos turísticos. As bancas de jornais são marcadas pela pornografia e anúncios de boates e filmes para adultos. A mentalidade aberta acomoda novas crenças, tais como o espiritismo e a macumba, dentro de sua estrutura teológica. O mundanismo, a carnalidade e o demônio conquistam a Igreja de forma tão sutil e paulatina que as defesas são ineficazes. Para vencer tais forças do mal, os cristãos precisam conhecer profundamente esses inimigos e criar planos para se manterem incontaminados.

Por outro lado, há guerreiros que se levantam contra essas ameaças de uma forma impensada e antibíblica. Eles lutam de maneira direta contra o mundo em sua manifestação superficial. Apontam os canhões de condenação contra a moda; as ultrapassadas seriam as bíblicas, por serem antigas. As mulheres devem evitar calças compridas e cortes de cabelo. As mangas compridas e saias bem abaixo dos joelhos seguem a norma estabelecida por Deus. Os homens que deixam a barba ou os cabelos crescerem estão fora do padrão bíblico. Assistir a um filme de Hollywood ou jogar futebol no domingo merecem a condenação absoluta. O televisor, mais conhecido como fábrica de pecados, recebe condenação incessante. Houvesse mosteiros evangélicos, os adeptos deste modo de lutar contra o mundo logo os lotariam. Vencer o mundo apenas pela fuga não resolve o problema, uma vez que defesa sem ataque implica em derrota final.

Beber um copo de cerveja ou fumar um cigarro é indesculpável. Tais “pecadores” não nasceram de novo. Tomar banho de mar ou passear pelas praias do Brasil em dias quentes de férias é ser contaminado pelos prazeres do mundo e cair na tentação da carne. Os vícios carnais se limitam ao sexo, bebida e drogas. A estratégia que conduz à vitória está concentrada no vocábulo “não”. “Não fumo, não bebo e não me associo como os que assim procedem.”

Alguns cristãos tacham de demoníaca toda e qualquer manifestação sobrenatural. Uma irrupção de “línguas estranhas”, frequentemente identificada com sons de origem oculta, é condenada. A melhor maneira de evitar as influências do Maligno seria limitar-se a participar, discretamente, apenas de cultos tradicionais que não deem abertura para uma invasão de atuação demoníaca.

À luz da Bíblia, nenhuma dessas linhas de defesa resistirá à “tríplice” investida das trevas. Além do mais, o exército de Deus deve avançar atacando. Encerrar-se atrás das barricadas seria apenas um paliativo e nunca uma estratégia única.

Sem a renovação do “primeiro amor”, a conservação das tradições e costumes manterá a casca, sem revelar a nojenta decomposição atrás dos bastidores. Se deixamos de reconhecer os sinais do mundo dentro da Igreja e a carnalidade envenenando nosso próprio caráter, como pretendemos conquistá-Ias? Se as ciladas de Satanás penetram facilmente nos corações e afetam as decisões dos membros do Corpo de Cristo, assim como um gato que prende o ratinho, como escaparemos no dia mau que vem chegando (Ef 6.13)?

A igreja e os seus congregados serão “mais do que vencedores” se deixarem que o Espírito Santo os encha. O Espírito foi concedido para transformar discípulos medrosos em testemunhas invencíveis (At 1.8). Cheios dEle, nenhum inimigo foi capaz de vencê-Ias (At 2-4). O Paracletos divino não se engana nem deixa de reconhecer as células cancerosas do mundanismo que infectam os órgãos vitais da igreja. O Espírito não luta apenas contra a carne (GI 5.17), mas identifica as marcas da natureza adâmica, para que possamos mortificá-Ia. O antagonista do diabo é o Espírito de Deus, porque Ele é maior (1Jo 4.4) e não suscetível ao engano.

Ser enchido pelo Espírito não é tanto uma questão de esforço, mas de entrega. Ele convence do pecado (Jo 16.8) e ilumina nossas inclinações, mas ainda precisa dar-nos a coragem para obedecer. Disse Hudson Taylor: “Deus dá o Espírito Santo não para os que O desejam, nem para os que oram e O pedem, nem para os que querem estar sempre cheios, mas aos que Lhe obedecem”.

C. S. Lewis nos adverte contra dois extremos: uma preocupação exagerada com o demônio e suas forças e uma ignorância total. Evitemos ignorá-Ia na descrença que interpreta sua influência maléfica como um acaso natural, ou explicar tudo que é desagradável ou ruim como consequência direta da sua atividade. O problema da hipersensibilidade de muitos cristãos da ala carismática mais radical, que os leva a identificar demônios agindo diretamente através da maioria ou mesmo em todos os problemas e contratempos, não favorece uma luta eficaz contra esse inimigo. Muitos crentes são obcecados pelos desafios da “guerra espiritual”, “ataque satânico”, “opressão demoníaca”, e isto os leva a se preocupar muito mais com o diabo do que com o Senhor. A consequência de tais exageros é dar mais reconhecimento a Satanás do que glória a Deus.

Ao invés de estarem firmados “na força do seu poder” (Ef 6.10), tais crentes ficam enredados por temores e ansiedades diante dos ataques que possam surpreendê-los a qualquer momento.[1]

Mas, uma vez discernida a presença e atuação real do inimigo, devemos lutar (Ef 6.12) com a disposição e disciplina de um esportista. O lutador não tem, como todos os praticantes dos outros esportes, oportunidade para recuperar o fôlego. Sempre alerta, sem nunca baixar a guarda, só assim o lutador poderá evitar o golpe fatal. Ninguém poderá esperar que Satanás tire folga ou que se afaste num feriado.[2]

Igualmente tenaz é o Espírito de Deus: “Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito” (Gl 5.25). Ele mantém nossa vida; também nos pode manter em pé, firmes contra o ataque que nos ameaça continuamente.

O prof. Richard Lovelace nos adverte sobre o elemento unificador no mal global. O mundo, no sentido bíblico negativo, identifica-se com o sistema total da corporação carnal que age sob o controle de Satanás. Nele há incentivos e restrições, galardões e perdas que produzem padrões característicos de comportamento, estruturas anticristãs, métodos, alvos e ideologias. Os símbolos bíblicos da prostituta e da Babilônia (em Apocalipse) e a Cidade do Homem, de Agostinho, incorporam muitas formas e atividades do mal, difíceis de discernir e ainda mais complexas para serem combatidas.[3] Quem se limita a combater o pecado de maneira individualista sente-se como um guarda num carro policial, empenhado em patrulhar sozinho uma megalópole como São Paulo ou Rio de Janeiro.

Sistemas econômicos, sociais e religiosos, caracterizados pela desumanidade, confirmam o ensino bíblico de que o mundo faz parte do espólio do diabo, que luta fortemente para manter cativo o que ele conquistou na queda (Mt 12.29). Sistemas econômicos, políticos e judiciários, relações raciais e internacionais revelam a infiltração do “joio” semeado pelo inimigo de Deus no mundo (cf Mt 13.28). No meio da criação, cresce indiscriminadamente tudo o que se opõe à intenção divina.

Ainda que todos nós estejamos envolvidos no pecado corporativo do mundo e, sem querer, sejamos participantes das investidas do “senhor” deste século contra Deus, como cristãos, temos a responsabilidade de confessar nossa culpa.[4] Foi assim que Neemias (9.16-37) e Daniel (9.3-19) lutaram, reconhecendo a participação dos justos no sistema apodrecido da nação. É somente pela morte que podemos nos livrar da malha humana da qual fazemos parte. Como os soldados romanos que crucificaram o Senhor da Glória, mas não sabiam o que faziam, contribuímos, queiramos ou não, para os propósitos do inimigo.

Mesmo assim, o clarim de Deus nos convida: “Retirai-vos dela (a Babilônia que corrompe as nações), povo meu, para não serdes cúmplices em seus pecados… ” (Ap 18.4). A advertência bíblica contra qualquer jugo desigual com os incrédulos, para evitar a contaminação do povo de Deus (2 Co 6.14-18; Lv 26.12; Jr 32.38; Ez 37.27; Is 52.11), deve nos alertar contra uma despreocupação com o mundanismo do qual parece impossível escapar.

A confissão e a separação das trevas devem ser acompanhadas de um ministério profético. Pela denúncia da injustiça e pelo modelo amoroso da igreja, que obedece à verdade e demonstra o amor fraternal, agapê, de coração ardente (1Pe 1.22), será possível levantar uma barricada contra as forças aliadas do mal.

Mais do que nunca, os cristãos precisam acordar, levantando-se dentre os mortos para buscar a iluminação de Cristo (Ef 5.14). No crepúsculo vespertino da história, urge que a igreja nacional e internacional reconheça os dias desafiantes que enfrentamos. Quebremos os laços invisíveis do mundo que nos algema. Levantemos um clamor até o céu com petições incessantes ao Senhor, para que Ele abra os olhos do coração do Seu povo (Ef 1.18), fazendo-o distinguir as ciladas do diabo e renovar uma luta eficaz contra a carne. Somente uma mobilização intensa e geral nos garantirá a vitória. Precisamos reconhecer o perigo da mente secularizada, a mente que sufoca e abafa qualquer concessão aos princípios cristãos.

O avanço do secularismo mundano e o rápido esvanecimento dos traços cristãos na sociedade devem forçar a Igreja a ser mais conscientemente cristã. É urgente aumentar o compromisso cristão no nível social e intelectual. Acima de tudo, precisamos articular e propagar o evangelho como a única alternativa para estes dias que se assemelham àqueles, “anteriores ao dilúvio” (Mt 24.38). Se não cremos que vale a pena resistir ao diabo, desvendar as falsas atrações do mundo e mortificar a carne, só nos resta aguardar o suicídio espiritual do “povo” de Deus.

É hora de encerrar estas linhas. Multiplicar palavras não aumenta necessariamente a força do compromisso de guerrear contra os inimigos de Deus. Mas a maior preocupação persiste: até onde nós, evangélicos, estamos engajados na luta? Que incentivo divino ou humano seria capaz de mobilizar os santos brasileiros para que gastem cinco minutos a mais em oração, batalhando contra o mundo, mortificando a carne e resistindo ao diabo? Que motivação de qualquer procedência nos convenceria de que “perseguir a santificação” é imprescindível, mil vezes mais importante do que levantar um templo novo, amplo e belo? Estruturas eclesiásticas, domínio político, poderio econômico, prédios faraônicos, organização mundial, tudo foi conquistado pela Igreja há mil anos. Mas todo esse sucesso eclesiástico não protegeu o povo de Deus das incursões do secularismo (Tt 2.12). Através dos séculos, avanços obtidos no âmbito humano foram compensados por perdas espirituais. A história se repete, mas há escapatória: basta que a igreja identifique seus adversários e confiantemente coloque toda a armadura de Deus. O Senhor tem sido e será nosso refúgio de geração em geração (SI 90.1).

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[1] Norio Yamakami, pastor da Igreja Holiness do Brasil, é a fonte principal deste parágrafo.

[2] Dean Sherman, Batalha Espiritual (Betânia), 1990, p. 3.

[3] Dynamics of Spiritual Life, pp. 93s.

[4] Cf. R. Lovelace, ibid., p. 94.

Trecho extraído da obra “O mundo, a carne e o diabo“, de Russell P. Shedd, publicado por Vida Nova: São Paulo, 1995, pp. 121-126. Publicado com permissão.

Russell P. Shedd (1929-2016), Ph.D., foi fundador de Edições Vida Nova, conferencista internacional e pastor. Intensamente preocupado com a educação teológica e a formação de líderes para a igreja brasileira e dos países de língua portuguesa, foi durante mais de 40 anos professor de Novo Testamento nas melhores escolas teológicas de São Paulo e escreveu inúmeras obras publicadas por Edições Vida Nova e pela Shedd Publicações.

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