Louis Berckhof nos sugere que se duas afirmações bíblicas, em seus contextos, parecerem contraditórias entre si, afirme as duas, pois elas se resolvem em plano superior. Um exemplo é o texto de Paulo aos Romanos, 9 a 11, onde ele contrapõe a responsabilidade de Israel à afirmação de sua soberania aplicada ao caso de Esaú e Jacó.
Os arminianos e calvinistas mais combativos não seguem o conselho de Berckhof. Escolhem um lado e lutam por ele, apaixonadamente. Talvez essa paixão explique o fato de ainda não termos chegado a uma melhor compreensão do tema, tachando-o, quando muito, de paradoxal, ou de insolúvel. A Confissão de Fé de Westminster afirma, em uma mesma frase, que o homem está morto para escolher, mas tem livre-arbítrio.
Assim, à busca do referido “plano superior”, compartilho meu modo de ver esse problema. E já pergunto: e se Deus, em sua misericórdia e soberania, determinasse que o homem poderia decidir sobre amá-lo ou rejeitá-lo? E se Deus nos tivesse feito assim, considerando isso o cerne da “imagem e semelhança”? Uma criatura absolutamente livre, no que concerne à sua possibilidade de amá-lo ou não? Nesse caso, qualquer que fosse a resposta humana, estaria dentro das possibilidades previstas (e determinadas) pelo Criador. Pois bem, entendo que o Gênesis nos relata exatamente isso. E essa compreensão se reflete na própria Confissão de Westminster, capítulo III: “de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas”.
Resta, no entanto, um embaraço bíblico: Efésios 2 nos diz que o uso que fizemos (em Adão) da liberdade nos levou a uma escravidão tal que, se Adão foi livre um dia, o mesmo não ocorre conosco. O homem natural é escravo do pecado, de forma que sua vontade está aprisionada.
Bem, é aí que eu vejo a ligação entre a soberania de Deus e a liberdade humana. Ao invés de uma se contrapor à outra, harmonizam-se na mente e nos projetos do Altíssimo. Deixe-me explicar.
A balança
Imagine a situação humana como um fiel de balança. Adão foi feito com seu ponteiro no ponto zero, no prumo. Não pendia nem para a direita nem para a esquerda. É o que chamaríamos de livre-arbítrio. Mas Satanás se valeu de sua escolha desastrada e nos aprisionou a todos do lado esquerdo. Com cadeado. De forma que Efésios 2:1-3 fica retratado nessa situação. Não temos mais escolhas livres. Nosso “escolhedor” está viciado, amarrado.
Então Deus, “por causa do grande amor com que nos amou”, e após nos ter revelado essa nossa condição desesperadora, encerrando-nos todos debaixo da desobediência (Rm 11:32), usa de misericórdia para com todos. Como?
Num determinado momento (ou período, ou fase, sei lá) de nossa vida, chamado pelo autor de Hebreus de Hoje , o Altíssimo se vale de seu poder e soberania e atua em nossas vidas, colocando nosso “fiel da balança” no centro de novo. Então, ele me diz: “escolhe livremente”. E a principados e potestades, diz: “ninguém interfere!” Nesse momento, por causa da soberania e do poder de Deus, e pela atuação de seu Espírito, somos livres; para aceitá-lo ou rejeitá-lo.
É importante ressaltar que, diferentemente do diabo, ele não leva nosso fiel para a direita total. Nem o amarra lá. Não. Ele é Senhor gentil: leva-o ao meio, onde exercitamos o “pendor do Espírito” ou o “pendor da carne” (cf. Rm. 8:5). E nos avisa que o pendor da carne é inimizade contra Deus (Rm 8:7).
Criei uma imagem, inspirado em C.S. Lewis. Qual das lâminas da tesoura corta o pano? Pois bem, aprouve a Deus que nossa salvação se fizesse por meio de uma “tesoura”. Deus se faz uma das lâminas, e nos atribui o papel da outra. Sem ele, estamos no inferno. Sem a nossa, estamos no inferno. Isso não nos iguala a Deus, pois jamais poderíamos, nós mesmos, construir essa tesoura e “cortar o pano”. Ele permanece no seu santo trono. Soberano. Justo, reto… e misericordioso.
Terminando o argumento, acho que é por isso que Jesus ensina a mulher samaritana que Deus procura alguma coisa. Procura verdadeiros adoradores. Criou a tesoura e espera que ofereçamos nossa lâmina, para nosso bem.
Uma parábola
Na [época] em 1996, a televisão levou ao ar uma reportagem sobre o uso de crack pelos adolescentes (e o assunto, hoje, virou epidemia).
Ao ver, na reportagem, o sofrimento dos pais e a luta ingente do drogado, lutando para se livrar das garras tirânicas da dependência, me ocorreu a seguinte parábola sobre esta questão da soberania divina e da liberdade humana. Ei-la.
Certo dia, um pai descobre que seu filho é um drogado, dependente de crack. Faz de tudo para ajudar o rapaz, mas este, ainda que lute para se desvencilhar, não tem mais forças para largá-la, e tenta se matar, inclusive para se livrar do complexo de culpa, pelo desgosto causado aos pais. O pai o acha a tempo (estava meio de olho), socorre-o e o salva.
Alguns dias depois, em conversa com o filho já convalescente, propõe-lhe uma solução extrema. O pai tem uma ideia para devolver ao filho a força (o livre-arbítrio) para sair daquela situação. Propõe ao filho e este aceita.
Pegam um carro e vão, somente os dois, para um sítio isolado. Longe de tudo e de todos. Ali, tentarão lutar contra a droga, cortando lenha, subindo corredeiras, trabalhando pesado até caírem mortos de cansaço. O pai está atento e determinado a aguentar mais que o fragilizado rapaz.
No segundo dia, o jovem começa a mudar: a mostrar-se indócil, agitado, impaciente, nervoso, irado, truculento, violento. Ele precisa daquela droga. Seu organismo exige (seu “senhor” o está chamando de volta). O pai vai contemporizando, conversando, distraindo, sabendo que precisa ganhar tempo. Precisa, pelo menos, de uma semana (este é o tempo que os médicos estabelecem para a desintoxicação química do organismo).
No terceiro dia, o filho tenta fugir de noite, mas o pai, que a estas alturas está dormindo com um olho só, o intercepta. O garoto está transtornado. O pai o agarra. Este, cego por dores internas fortíssimas, agride o pai com fúria, e tenta correr. O pai se levanta e o alcança. Está determinado a ajudar o filho. Uma semana, é a meta. Faltam 4 dias ainda. Agarra o garoto, que tenta agredi-lo novamente. Mas desta vez o pai é quem o soca violentamente. O garoto cai desacordado.
O pai o leva de volta para a casa e o amarra na cama. Quando o rapaz acorda, começa a gritar, gemer, xingar, blasfemar, contorcer-se, desafiar o pai, dizer os piores desaforos. O pai tenta abraçá-lo, mas é recebido com cusparadas e palavrões. Uma noite de cão.
A estas alturas, imagino um calvinista dizendo: “aqui, o pai retirou o livre-arbítrio do menino”. E eu responderia: “que livre-arbítrio?”
Amarrado, o rapaz fica ali por mais quatro dias. Reclama de dores nas costas, de mau-jeito, de dores nas mãos, nos tornozelos, por causa das cordas. O pai, algumas vezes, tentou afrouxá-las, para aliviar o desconforto, para levá-lo ao banheiro, etc., mas ele tentou escapar. Foi preciso lutar, agarrar, bater de novo. Bem, não vou me alongar nos detalhes deste transe medonho. O fato é que a semana se passa, e, ao raiar do oitavo dia, o garoto já não está mais suando, nem com cólicas, nem trêmulo, nem com dores na barriga. Passou. A dependência química está cedendo.
Nesse dia, logo pela manhã, o rapaz acorda com um cheiro de café coado na hora, broas de milho, pão, manteiga e outras guloseimas. Uma mesa posta. Ele estava quase de jejum, e se mostra faminto.
Então o pai o surpreende: chega na sua cama com um sorriso e desata-lhe as cordas. Solta-o e convida-o para o café. Ele toma um banho quente e se assenta à mesa. Está mais animado, e chega a balbuciar algumas palavras monossilábicas, em resposta às tentativas de conversa do pai. Está despertando de um pesadelo.
No meio do café, num gesto brusco, levanta-se e corre para a porta. Num segundo, já está lá na porteira. Mas estranha que seu pai não esteja ao seu encalço. Olha para trás e constata que ele ficou parado, na porta da casa. Desconcertado e curioso, ele para e arrisca uma olhada, como que a perguntar: você não vai me prender?
O pai, entendendo a perplexidade do filho, grita de lá: “filho, Hoje você é um rapaz livre. Das drogas e de mim. Você volta para elas se quiser; volta para mim se quiser. Filho, não quer terminar o café?”
Rubem Amorese
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