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Como pode um Deus de amor mandar alguém para o inferno?

Timothy Keller - Céu ou Inferno?

“Ora”, você talvez diga, “combater o mal e a injustiça no mundo é uma coisa, mas mandar gente para o inferno é outra. A Bíblia fala de punição eterna. Como isso pode ser compatível com o amor de Deus? Não consigo aceitar nem sequer a ideia de inferno com um Deus de amor”. Como lidar com essa objeção compreensível?

O indivíduo moderno acha inevitavelmente que o inferno funciona assim: Deus nos dá um tempo, mas se não fizermos as escolhas corretas até o final da vida, ele condena nossa alma ao inferno por toda a eternidade. Enquanto despenca no espaço, a pobre alma implora piedade, mas Deus lhe diz: “Tarde demais! Você teve sua oportunidade! Agora vai sofrer!”. Essa caricatura interpreta de modo equivocado a própria natureza do mal. A imagem bíblica é que o pecado nos afasta da presença de Deus, que é a fonte de toda a alegria e, com efeito, de todo amor, de toda sabedoria e de todo tipo de coisas boas. Como no início fomos criados para estar próximos de Deus, só diante de sua face crescemos, florescemos e realizamos plenamente nosso potencial. Perder por completo sua presença é o inferno – a perda de nossa capacidade de dar ou receber amor ou alegria.

Uma imagem comum do inferno na Bíblia é o fogo.[1] O fogo desintegra. Mesmo nesta vida somos capazes de ver a desintegração da alma causada pelo egocentrismo. Sabemos como o egoísmo e o narcisismo levam à amargura aguda, à inveja nauseante, à ansiedade que paralisa, aos pensamentos paranoicos e às negações e distorções mentais que acompanham tudo isso. Faça agora a si mesmo a seguinte pergunta: “E se quando morrermos não desaparecermos, se nossa vida continuar eternamente?”. O inferno, assim, é a trajetória de uma alma que leva uma vida narcisista e autocentrada para todo o sempre.

A parábola de Jesus sobre o rico e Lazáro em Lucas 16 respalda a noção de inferno aqui apresentada. Lázaro é um homem pobre que mendiga no portão de um rico cruel. Ambos morrem, e Lázaro vai para o céu, ao passo que o rico vai para o inferno. De lá, o rico vê Lázaro no céu, “junto de Abraão”.

“E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim e envia-me Lázaro para que molhe na água a ponta do dedo e me refresque a língua, pois estou atormentado nestas chamas. Abraão, porém, disse: Filho, lembra-te de que em tua vida recebeste bens, mas Lázaro, por sua vez, recebeu males; agora ele aqui é consolado, e tu, atormentado. Além disso, há um grande abismo entre nós e vós, de forma que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem os daí passar para nós. Então ele disse: Eu te imploro, ó pai, que o mandes à família de meu pai, porque tenho cinco irmãos. Manda-o para os advertir, a fim de que eles também não venham para este lugar de tormento. Abraão lhe disse: Eles têm Moisés e os Profetas; que os ouçam. Ele respondeu: Não, pai Abraão! Se alguém dentre os mortos for falar com eles, irão se arrepender. Abraão, porém, lhe disse: Se não ouvem Moisés nem os Profetas, tampouco acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dentre os mortos” (Lc 16.24-31).

O impressionante é que mesmo diante da inversão de situações, o rico parece cego ao que está acontecendo. Ele ainda espera que Lázaro seja seu servo e o trata como menino de recados. Ele não pede para sair do inferno, mas dá a entender claramente que Deus nunca lhe deu, nem à sua família, informações suficientes sobre a vida após a morte. Comentaristas observam a incrível dose de negação, de transferência de culpa e de cegueira espiritual nesta alma no inferno. Observam ainda que o rico, ao contrário de Lázaro, jamais é citado pelo nome, mas chamado apenas de “homem rico”, insinuando nitidamente que já que sua identidade se apoiava na riqueza e não em Deus, uma vez perdida a riqueza, perde-se toda a noção de identidade.

Em resumo, o inferno é a escolha voluntária de uma identidade separada de Deus numa trajetória rumo à eternidade. Vemos esse processo “em pequena escala” nos viciados em drogas, álcool, jogo e pornografia. Primeiro ocorre a desintegração, pois, conforme o tempo passa, o indivíduo precisa cada vez mais daquilo em que se viciou para conseguir a mesma sensação, o que conduz a uma satisfação cada vez menor. Depois, vem o isolamento, à medida que o viciado culpa cada vez mais os outros e as circunstâncias a fim de justificar seu comportamento. “Ninguém entende! Estão todos contra mim!” é a queixa pronunciada com uma dose cada vez maior de autopiedade e egocentrismo. Quando construímos nossa vida com base em outra coisa que não seja Deus, essa coisa – apesar de boa – transforma-se em um vício que escraviza. A desintegração pessoal ocorre em uma escala mais ampla. Na eternidade, tal desintegração prossegue indefinidamente. Crescem o isolamento, a negação, a ilusão e auto-obsessão. Quando se perde por completo a humildade, perde-se o contato com a realidade. Ninguém jamais pede para sair do inferno. A própria ideia de céu passa a parecer tapeação.

Em sua alegoria The great divorce,[2] C. S. Lewis descreve um ônibus cheio de gente que, vindo do inferno, chega à fronteira com o céu. Os passageiros são instados a deixar para trás os pecados que os condenaram ao inferno, mas se recusam a fazê-lo. As descrições das personagens são impressionantes, pois nelas reconhecemos o autoengano e o narcisismo presentes em “pequena escala” em nossos próprios vícios.[3]

O inferno começa com um humor ranzinza, sempre queixoso, sempre imputando culpa aos outros […] mas você ainda consegue se distinguir no meio disso, pode até criticar esse comportamento em si mesmo e desejar livrar-se dele. No entanto, talvez chegue o dia em que isso já não seja possível. Então, não existirá mais este você para criticar o humor ou até para desfrutá-lo, restando apenas as queixas, repetidas indefinidamente como uma máquina. Não se trata de “sermos mandados” por Deus para o inferno. Em cada um de nós existe algo que está crescendo, que virá a SER o inferno, a menos que o cortemos pela raiz.[4]

Os seres no inferno sofrem, mas Lewis nos mostra por quê. Tão destruidoras quanto chamas incontroláveis, vemos sua arrogância, sua paranoia, a autopiedade e a certeza de que todos os outros estão errados, todos os outros são idiotas! A humildade se perdeu por completo, assim como a sanidade. Eles estão encarcerados para sempre na prisão do egocentrismo, e seu orgulho cresce aos poucos até se tornar uma nuvem em forma de cogumelo cada vez maior. Para sempre continuarão a se despedaçar, culpando qualquer um que não seja eles mesmos. Em grande escala, isso é o inferno.

Portanto, a imagem de Deus lançando seres humanos em um abismo onde eles imploram: “Sinto muito, me deixe sair!” não passa de uma imagem caricata. Os passageiros do ônibus do inferno na parábola de Lewis preferem ficar com sua “liberdade”, conforme eles próprios definem, a obter a salvação. Têm a ilusão de que, se glorificassem a Deus, de alguma forma perderiam poder e liberdade, mas em uma suprema e trágica ironia, a escolha que fizeram arruinou o potencial de grandeza que detinham. O inferno, como diz Lewis, é “o maior monumento à liberdade humana”. Como se lê em Romanos 1.24, Deus “os entregou […] ao desejo […] de seus corações”. No final, Deus está apenas concedendo aos seres humanos o que eles mais desejam, incluindo a liberdade em relação a ele próprio. O que poderia ser mais justo? Lewis escreve:

Existem apenas dois tipos de indivíduos – os que dizem a Deus “seja feita a vossa vontade” e aqueles a quem Deus diz no fim “seja feita a vossa vontade”. Todos os que estão no inferno escolheram estar lá. Sem esse livre arbítrio não haveria inferno. Uma alma que, com seriedade e constância, deseje a alegria jamais deixará de tê-la”.[5]

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[1] Todas as descrições e imagens de céu e inferno na Bíblia são simbólicas e metafóricas. Cada metáfora indica um aspecto da experiência do inferno (por exemplo, “fogo” subentende desintegração, ao passo que “trevas” nos falam de isolamento). Isso não implica de forma alguma que o céu e o inferno em si mesmos sejam “metáforas”. Eles são reais. Jesus subiu (com seu corpo físico, não esqueça) ao céu. A Bíblia afirma claramente que céu e inferno são realidades, mas também indica que a linguagem que os descreve é alusiva, metafórica e parcial.

[2] Edição em português: O grande abismo, tradução de Ana Schäffer (São Paulo: Vida, 2006).

[3] Veja mais detalhes sobre a semelhança do pecado com o vício em Cornelius Plantinga, “The tragedy of addiction” (cap. 8), in: Not the way it’s supposed to be: a breviary of sin (Eerdmans, 1995).

[4] Compilação de citações de Lewis a partir de três fontes: Mere Christianity (Macmillan, 1964), p. 59 [edição em português: Cristianismo puro e simples, tradução de Álvaro Oppermann e Marcelo Brandão Cipolla (São Paulo: Wmfmartinsfontes, 2009)]; The great divorce (Macmillan, 1963), p. 71-2 [edição em português: O grande abismo, tradução de Ana Schäffer (São Paulo: Vida, 2006)]; “The trouble with X”, in: God in the dock: essas on theology and ethics (Eerdmans, 1970), p. 155.

[5] Extraído de C. S. Lewis, The problem of pain (Macmillan, 1961), p. 116 [edição em português: O problema do sofrimento, tradução de Alípio Franca (São Paulo: Vida, 2006)]; The great divorce (Macmillan, 1963), p. 69.

Trecho extraído da obra “A fé na era do ceticismo: Como a razão explica Deus”, de Timothy Keller, publicado por Vida Nova: São Paulo, 2015, p. 104-108. Traduzido por Regina Lyra. Publicado com permissão.

Pescado em Tuporem

Timothy Keller nasceu e cresceu na Pensilvânia, com formação acadêmica na Bucknell University, no Gordon-Conwell Theological Seminary e no Westminster Theological Seminary. Ele é pastor da Redeemer Presbyterian Church, em Manhattan. Já esteve na lista de best-sellers do New York Times e escreveu vários livros, entre eles A fé na era do ceticismo, Igreja centrada, A cruz do Rei, Encontros com Jesus, Ego transformado, Justiça generosa, entre outros, todos publicados por Vida Nova.

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