A expiação cristã
Reflita sobre a expiação neste interessante artigo de Timóteo Carriker. É um assunto basilar, muitas vezes mistificado em meio a tantos conceitos, noutras esquecido em detrimento de aparências.
O assunto “expiação” é longo e complexo tanto no sentido linguístico quanto na sua compreensão teológica. É complexo no sentido linguístico porque a palavra “expiação” não traduz uma só palavra. Ela é derivada do latim (de “ex”– a remoção de; e “piare”–aplacar ou apaziguar), traduz duas palavras em hebraico (“kata’ach” para “transgressão” em Nm 8.7 e “kipur” para “apaziguar” em Dt 32.43) e está por trás de pelo menos três palavras em grego (“lutron” para “resgate”, “katharismos” para “purificação” e “teleiosis” para “perfeição”).
O tema expiação é mais complicado ainda na sua expressão teológica. Uma rápida busca pela Wikipédia revela a existência de dois tipos de expiação: A expiação limitada, que é advogada por escolásticos e reformados, e a expiação ilimitada, que é defendida por católicos romanos, ortodoxos e arminianos. E há pelo menos oito teorias diferentes sobre a expiação, a saber: “Christus Victor”, governamental, da influência moral, da substituição penal, do resgate, da recapitulação, da satisfação e a da substituição. E isto só para introduzirmos o assunto.
Devo dizer que a controvérsia surge, a partir de dois motivos, primeiramente as Escrituras não se preocupam em entrar nos pormenores das diversas teorias, e o outro assunto que é de suma importância, pois trata do restabelecimento da nossa comunhão com Deus. A Bíblia usa diversos termos para falar disso: A justificação, a salvação, a reconciliação, a nova criação, a libertação e a cura para mencionar apenas alguns dos mais conhecidos. Ou seja, a “expiação dos nossos pecados” não é a única maneira da Bíblia falar sobre o significado da morte e ressurreição de Cristo a fim de colocar o crente em bom estado diante de Deus. E convém que a gente não se limite a esta única maneira, por mais importante que seja.
Também vale a pena dizer logo no início que, quando a Bíblia trata do assunto expiação, ela não nos dá uma teoria abstrata. Ao invés disso, descreve eventos. Inclusive, quando “Jesus” trata do significado da sua morte, “ele” também não nos apresenta uma teoria. Ele estabelece uma refeição. Devemos refletir seriamente neste dado.
Finalmente, é do interesse da igreja cristã refletir sobre o significado especificamente “cristão” da expiação. Digo isto porque seria fácil mantermos o nosso enfoque apenas na origem da expiação no Antigo Testamento e simplesmente dizer que Cristo cumpriu aquilo sem antes levar em consideração: 1) a interpretação dos autores do Novo Testamento sobre o significado da morte e ressurreição de Cristo para o perdão dos nossos pecados e 2) sem refletir sobre o desenvolvimento, ao longo do Antigo Testamento, do sistema e conceito dos sacrifícios em geral, no qual o ato de expiação se baseia.
Este será então o esboço desta reflexão: Primeiro, a perspectiva que o Novo Testamento dá à expiação e depois, as raízes desta perspectiva no “desenvolvimento” do sistema de sacrifícios no Antigo Testamento. Este discurso nos dará uma base um pouco mais sólida para fazer algumas observações para hoje sobre a teologia ou a doutrina da expiação.
De um jeito ou de outro, a restauração da nossa comunhão com Deus é assunto de todos os autores do Novo Testamento e um tratamento mais “completo” do assunto ocupará literalmente volumes de livros. Neste espaço limitado queremos considerar apenas duas perspectivas: A perspectiva daquele que é o meio da expiação, Jesus Cristo, e a perspectiva de quem mais elaborou o assunto teologicamente: o apóstolo Paulo.
O significado que Jesus deu à sua morte e ressurreição
Certamente esse é o lugar onde devemos começar a nossa conversa. Como Jesus apresentava para os seus discípulos o significado da sua morte e ressurreição. Lógico que recebemos a sua orientação por meio dos evangelistas e a coerência entre essas perspectivas atestam a fidelidade da transmissão da sua apresentação. Penso especialmente em duas ocasiões: Primeiro, o estabelecimento da Ceia do Senhor, a refeição pascal, na véspera da sua morte, e segundo, a afirmação da necessidade do seu sofrimento. Vejamos:
É notável que Jesus não tenha feito uma palestra e nem exposto de maneira abstrata o significado da sua morte e ressurreição. Ao invés disso, ele estabeleceu uma refeição que era justamente com a celebração da Páscoa (Mt 26.17-30; Mc 14.12-26; Lc 22.7-23; Jo 13.1-20; 1Co 11.17-34). Ao fazer isso, Jesus fazia duas referências: Uma, à libertação do povo de Deus lembrada na Ceia pascal, e a outra, ao propósito da vinda do “Filho do Homem”. A primeira referência é facilmente reparada nos estudos sobre a última Ceia. Ao associar o pão e o vinho com o seu corpo e sangue, Jesus explicitamente interpreta o propósito da sua morte e ressurreição, associando-as à maior obra de Deus lembrada pelos judeus a seu favor: A libertação da escravidão no Egito e o livramento da morte como castigo de Deus dado a faraó e, por consequência, ao povo egípcio. Assim, Jesus estava anunciando efetivamente que o livramento do povo de Deus estava prestes a acontecer na sua morte. Mas há mais, afinal de contas, o povo de Deus havia experimentado livramento diversas vezes ao longo da sua história: dos egípcios, dos babilônios e dos sírios. O livramento dado por Jesus será mais um entre outros que ocorreram e quem sabe, ainda acontecerão?
Nesse sentido é importante observar que ao associar a sua morte com a Páscoa do êxodo, Jesus colocou o significado desse evento dentro do contexto da esperada vinda do “Filho do Homem” (Mt 26.2, 24; Mc 13.24-27; 14.21; Lc 21.36; 22.22) e assim, deu um significado definitivo. A expressão, “Filho do Homem” pode se referir a uma figura humana, por exemplo, um profeta ungido por Deus, como no caso do profeta Ezequiel (veja também Dn 8.17). Ou por se referir a uma figura sobrenatural, como a figura divina que fica ao lado do “Ancião de Dias” (Deus), cujo domínio abrange nada menos que o mundo inteiro (Dn 7.13-14). Quando Jesus falava de si como o “Filho do Homem”, entretanto, ele estava fazendo referência à figura de Daniel 7, o qual fica ao lado de Deus e tem domínio sobre tudo (veja especialmente Mt 9.6; 13.41; 16.27-28; 19.28; 24.27-30; 25.31; 26.64 e os paralelos nos outros evangelhos). Mas Jesus acrescenta uma informação nova e muito importante a respeito desse Filho do Homem que não faz parte da descrição em Daniel 7: Esse Filho do Homem teria de sofrer (Mt 12.40; 17.12, 22; 20.18,28; 26.2 e paralelos). Por exemplo: “Tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.28). Assim, Jesus associa o Filho do Homem de Daniel 7 com o Servo Sofredor de Isaías 53, cujo propósito era de efetuar um resgate, a linguagem do êxodo lembrada também na celebração da Páscoa judaica. Desta forma, Jesus aponta para si mesmo como a esperada figura nas Escrituras que realizará a salvação definitiva do povo de Deus por meio do sofrimento e no lugar deles (“resgate “por muitos”, veja também 1Pe 1.18-19). Assim, já temos o significado dado por Jesus da “expiação”, isto é, o livramento das nossas transgressões. Não que isto esgote o que Jesus disse a respeito do significado da sua morte e ressurreição.
E o maior teólogo da igreja primitiva? Como ele interpretava a morte e ressurreição de Jesus? Paulo elabora de diversas maneiras o significado disto, falando da justificação, da reconciliação, da redenção, da salvação, da conversão, do perdão, da libertação, da regeneração e do revestimento de uma nova pessoa, mencionando apenas algumas das expressões. Vamos focar em uma só dessas expressões de Paulo de como a morte de Jesus efetuou a nossa salvação e nos colocou de novo no propósito dado para Abraão, do povo de Deus ser uma bênção para todas as famílias da terra (Gn 12.1-3).
O significado que Paulo deu à morte e ressurreição de Jesus
Paulo descreve a morte de Jesus em termos de expiação mais explicitamente nas seguintes passagens:
Pois o amor de Cristo nos constrange, julgando nós isto: um morreu “por todos”; logo, todos morreram. E ele morreu “por todos”, para que os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que “por eles” morreu e ressuscitou […] Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões […] Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado “por nós”; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus. (2 Coríntios 5.14-15,19,21 – ARA)
[…] Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus. (Rm 3.23-26)
Porque Cristo, quando nós ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. Dificilmente, alguém morreria por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém se anime a morrer. Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo, muito mais agora, sendo “justificados pelo seu sangue”, seremos “por ele salvos da ira”. Porque, se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida; e não apenas isto, mas também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, “por intermédio de quem” recebemos, agora, a reconciliação. (Rm 5.6-11)
Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte. Porquanto o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito, condenou Deus, na carne, o pecado […] (Rm 8.1-3)
Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição “em nosso lugar” (porque está escrito: “Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro”), para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Jesus Cristo, a fim de que recebêssemos, pela fé, o Espírito prometido. — (Gl 3.13-14)
Já foram escritos volumes e comentários de teologia apenas sobre estas passagens e aqui podemos oferecer somente algumas observações iniciais. Repare, por exemplo, a linguagem de expiação nestas passagens: A ideia de um sacrifício realizado por uma vítima inocente “no lugar de” outras pessoas não inocentes. Isto é afirmado em todas as passagens acima: Cristo morreu no nosso lugar e assim pagou a pena das nossas transgressões de tal modo que os que põem a sua confiança em Cristo — creem — são agora inocentados — justificados ou reconciliados — diante de Deus. Em Gálatas, isto ocorre da seguinte maneira:
Primeiro, pela sua morte na cruz, Jesus é pronunciado maldito pela lei judaica que estipula que os defuntos deverão ser enterrados e não deixados ao ar livre “pendurado em madeiro” para apodrecer — citando as leis de pureza e impureza em Deuteronômio 21.23. Assim, a condição de “maldito” é a condição de um impuro, a qual, na compreensão do judeu, é a condição dos gentios porque não obedecem a lei judaica. Por isso, falando para a sua audiência predominantemente não judia, Paulo pode dizer que Cristo se fez maldição “em nosso lugar”, como todos que não obedecem a lei, o que inclui também os judeus, porque Paulo logo antes havia afirmado que esta condição de maldição cabe a qualquer um que não obedece “toda” a lei.
Segundo, Paulo era o ex-fariseu que, entre outras características, cria na ressurreição dos mortos “como evidência da vindicação” — inocência ou “justificação”, nós podemos entender isto melhor se lermos “justiça-ficação” — por Deus. O raciocínio funciona assim: O mesmo autor da lei, que condenou Jesus como maldito, ressuscitou Jesus e assim reverteu a maldição anterior em bênção, a condenação em aprovação. E lembrem-se que a condição anterior de maldito colocou Jesus na posição de um gentio impuro, ou melhor, de qualquer ser humano, gentio ou judeu, que não consiga seguir, à risca, a sua lei. Ao inocentar, vindicar e justificar Jesus pela sua ressurreição, Deus está vindicando ou justificando as pessoas que se identificam com ele — “em nosso lugar” –, e isso ocorre “pela fé”, quer gentio quer judeu, sem o pré-requisito da lei. Por isso, Paulo conclui que Cristo, antes-morto-mas-agora-ressurreto nos resgata da maldição da lei e assim a bênção de Abraão — de abençoar todas as famílias da terra — (Gn 12.1-3) chega aos gentios.
Conclusão
O Novo Testamento fala muito mais sobre o significado da morte e ressurreição de Jesus. Aliás, está em todas as páginas do Novo Testamento sendo o assunto principal e o mais importante de todos. Por isso mesmo, é tão difícil resumir. Mas arriscamos fazer algumas observações finais. “Primeiro”, a fé cristã baseia-se fundamentalmente em um dado histórico, a ressurreição de Jesus (1Co 15.1-19). Sem este dado, é apenas uma entre muitas outras religiões. “Segundo”, este acontecimento testemunhado por muitos teve efeito muito além da pessoa de Jesus. Pois a maneira que ele morreu e as características da sua vida e ministério apontavam para ele como a encruzilhada e cumprimento das promessas de Deus feitas a partir de Abraão: de abençoar um povo para ele e por meio deste povo abençoar mais povos ainda. “Terceiro”, geralmente os estudos sobre a expiação começam com uma exposição da ideia do Dia de Expiação elaborado em Levítico 16. Seria importante fazê-lo especialmente para uma exposição de Hebreus 9 e 10, mas não é o referencial mais importante na perspectiva de Jesus e de Paulo, embora seja pressuposto por ambos. E “finalmente”, algo essencial que precisamos acrescentar aqui: A apropriação da expiação, a eficácia da substituição da morte de Jesus pelas nossas transgressões e para a nossa transformação posterior em povo de Deus é efetuada pela vinda e habitação plena do Espírito Santo nas nossas vidas, o qual possibilita transformação de fato. Assim, Deus se revela tanto como um Deus justo que estabelece um meio correto — a lei — de nos relacionarmos com ele e disciplina-nos quando não obedecemos, quanto como um Deus misericordioso e perdoador que paga, ele próprio na pessoa do seu Filho, a pena que de outra sorte merecemos. Como disse o Apóstolo Paulo:
Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém! (Rm 11.33-36).
Timóteo Carriker é missiólogo norte-americano e vive no Brasil desde 1978. É professor de teologia e missões e autor de, entre outros, Trabalho, Descanso e Dinheiro e A Visão Missionária na Bíblia. Acompanhe seu blog pessoal.
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